O cancelamento da 90ª edição do Salão automóvel de Genebra, que estava prevista realizar-se de 5 a 15 de março, devido às crescentes preocupações com a propagação do Coronavírus 2019 (COVID-19) veio colocar o dedo numa outra ferida: até que ponto faz sentido o vetusto modelo das apresentações de modelos e de veículos em que a indústria automóvel aposta em organizar há décadas a fio quase da mesma maneira?

Com as potencialidades da comunicação instantânea que temos à disposição, não será mais eficiente e sustentável abraçar novas formas de comunicar, que representem menos gasto de dinheiro, menor perda de tempo e menor pegada de carbono?

O Welectric entende que sim e tem sensibilizado diferentes marcas para este seu ponto de vista.

Modelo antigo: fora de prazo

Genericamente, os fabricantes de automóveis organizam dois tipos de eventos internacionais para darem a conhecer os seus veículos: apresentações estáticas (em que os veículos são mostrados, como num comum showroom, sem que haja possibilidade de os conduzir) e apresentações dinâmicas (em que existe a possibilidade da comunicação social guiar a viatura em questão).

Tanto nas apresentações internacionais estáticas, como nas dinâmicas, os fabricantes colocam (normalmente) à disposição dos jornalistas diferentes responsáveis seus – diretores de diferentes áreas, designers e engenheiros – para que possam esclarecer as dúvidas da imprensa a respeito do produto que estão a exibir, as quais, no fundo, são as dúvidas de milhares de leitores.

Porém, para qualquer um deste tipo de iniciativas, as marcas de automóveis é costume convocar a imprensa de todo o mundo para conhecer esse carro num determinado local no globo, numa localização escolhida segundo diferentes critérios: pela sua relevância para a marca, pela sua importância estratégica enquanto mercado ou simplesmente pelas suas belezas paisagísticas.

Largas centenas de jornalistas dos mais diversos continentes viajam (quase sempre de avião e depois com transferes de automóvel ou shuttle) até ao local do evento.

Chegados ao local, após longas horas de espera em aeroportos e fastidiosas viagens de avião com voos de ligação por vezes pelo meio, os jornalistas são confrontados com espetáculos, muitas vezes, cheios de luz e som em que o automóvel é destapado perante centenas de flashes de máquinas fotográficas a disparar.

Tudo cheio de glamour, sem dúvida, mas, por vezes, o tempo útil da apresentação reduz-se a muito pouco: duas ou três horas para ver um veículo que poderia ser visto à distância e com conversas apressadas com alguns técnicos da marca (às vezes, nem sequer isso e com pouco sumo dada a formatação de marketing com que os interlocutores estão instruídos) que poderiam ser atendidas igualmente à distância.

Tudo espremido, resume-se a pouco.

Não porque o produto seja desinteressante, mas porque se trata de participar num evento em que a mais-valia obtida por nos deslocarmos é muito reduzida.

Esta ideia é especialmente aplicada às apresentações estáticas.

Claramente, é um tipo de evento in loco, na nossa perspetiva, que nada acrescenta à informação que possamos transmitir.

Por diversas razões e desde logo por motivos de sustentabilidade.

Insustentabilidade das viagens

As deslocações aéreas representam uma forte pegada de carbono. Segundo dados da organização alemã Atmosfair (aqui destacados pelo The Guardian), um voo de Londres a Roma representa uma emissão de 234 quilos de CO2 imputados pela queima de combustível, equivalente à geração anual de emissões de carbono de cidadãos de 17 países.

No site CO2 Myclimate, é possível fazer uma simulação de quanto CO2 traduz a viagem em avião. Por exemplo, uma viagem de ida e volta para uma pessoa de Lisboa a Frankfurt em classe económica vale uma pegada de carbono de 0,686 t de CO2.

Fazer Lisboa-Paris-Lisboa em avião produz por pessoa 0,552 t de CO2.

Isto por pessoa. Se para uma apresentação, for convidado um grupo de doze pessoas de Portugal, temos uma emissão de 6,6 t de CO2.

Se multiplicarmos este valor pelas centenas de pessoas oriundas de diferentes países, uns mais longe e outros mais perto, temos uma assustadora pegada ambiental.

Num momento que todas as emissões contam para ajudar a controlar o aumento geral da temperatura do planeta, fazer deslocações aéreas que eram escusadas porque seguem modelos tradicionais de comunicação desajustados às exigências de sustentabilidade são uma flagrante contradição.

Paradoxo face às mensagens

O paradoxo é ainda mais chocante, pois, a par das informações do produto “tout court”, este tipo de eventos são envoltos em muitas mensagens de marketing a propagar a sustentabilidade e a responsabilidade ambiental.

No Welectric temos vindo a reduzir ao mínimo indispensável as nossas deslocações aéreas, pelos princípios de sustentabilidade que regem o nosso projeto.

A redação e os editores decidiram que iremos apenas aos eventos que proporcionem experiências e informação que não possam ser obtidas por outros meios. E nesse espírito já recusámos alguns convites que nos fizeram, fazendo ver às marcas o nosso pensamento.

Apresentações estáticas, sem test-drive, não cumprem claramente este requisito.

se queremos mudar o paradigma de sustentabilidade, precisamos de fazer a nossa parte e entendemos que esta mudança é essencial.

O cancelamento do salão de Genebra pode também ser uma oportunidade para a indústria automóvel fazer um “click” e passar a organizar o seus eventos de apresentações estáticas assentes antes em modelos online, com a vantagem de, com isso, aumentarem potencialmente e de forma considerável o seu alcance junto da imprensa credenciada à escala global.

O mesmo investimento, maior retorno, maior sustentabilidade. E maior eficiência.

Aliás, não é por acaso que os próprios salões, outrora palco sagrado para os fabricantes fazerem as suas provas de força dos seus produtos, começam a perder exuberância. Pesando na balança os ganhos e perdas e confrontados com valores de presença exorbitantes exigidos pelas organizações dos salões, as marcas começaram já a repensar esta sua estratégia de comunicação. E este mesmo salão de Genebra, mesmo que se realizasse, já não iria contar com um relevante número de insígnias: Citroën, Ford, Jaguar, Lamborghini, Land Rover, Mini, Mitsubishi, Nissan, Opel, Peugeot, Subaru, Tesla e Volvo estariam ausentes.

Entendemos que no que diz respeito à comunicação com a imprensa, os construtores têm também de repensar o seu “modus operandi”.

Consideramos que os construtores têm de dar um passo em frente também no modo de comunicar, a favor de uma identidade corporativa que seja sustentavelmente coerente.

Os exemplos de videoconferência

Os modernos meios de comunicação aproximam povos e pessoas. Num tempo de redes sociais online, as entrevistas por videoconferência ou por skype são opções excelentes e de grande eficiência.

Já temos assistido a apresentações de produto em live streaming, algumas delas promovidas (e acompanhadas) pelas marcas em Portugal.

Um exemplo concreto ocorreu com a apresentação do novo Volvo XC40 Recharge – a marca fez a apresentação mundial em Los Angeles e o importador nacional da marca sueca organizou em solo nacional, um evento para a imprensa em que, além da retransmitir o “live” de Los Angeles por webstreaming, permitiu que os jornalistas pudessem esclarecer algumas dúvidas, dado que os representantes nacionais do construtor estavam a par do produto e tinham as informações para o mercado nacional.

Noutro evento, a Volvo Cars apresentou a partir da sua sede em Gotemburgo, o seu projeto “Vision 2020” para o mundo, recorrendo a um livestreaming em vez de levar à Suécia centenas de jornalistas, com tudo aquilo que acarretaria de avultadas despesas de deslocação e alojamento e de emissões de CO2.

A Ford e a Tesla também já têm igualmente feito transmissões live acessíveis em qualquer computador, nas quais é possível ter acesso às apresentações da marca.

Aliás, no seguimento do cancelamento do Salão automóvel de Genebra 2020, várias marcas, caso da Honda, da DS, da Hyundai e da Seat, optaram por realizar conferências de imprensa online, em live streaming, nas quais disponibilizaram informação sobre a sua gama de lançamentos.

Foram tudo experiências muito positivas, em que conseguimos sempre obter as informações necessárias ao nosso trabalho. Estaremos, por isso, na primeira linha para apoiar iniciativas semelhantes das marcas que seguirem este tipo de exemplos.

No caso da recente world premiere do novo Golf 8, em Wolfsburgo, em outubro de 2019, gerou-se o paradoxo da VW levar uma comitiva de jornalistas de Portugal para a apresentação estática, na Alemanha. Ao mesmo tempo, transmitiu todo o evento, pela net, o que significa que tudo o que foi visto poderia ter sido percecionado num qualquer computador, sem dispêndio de emissões de CO2.

Neste evento, o grupo português esteve, inclusive, na iminência de falhar o “espetáculo” que tinha sido montado pela VW em Wolfsburgo, já que o segundo voo de ligação (Frankfurt-Hanover) foi cancelado, o que obrigou a que viajasse de comboio e depois fizesse uma ainda demorada viagem de shuttle até à sede da Volkswagen.

Depois de ter saído às 07.30h de Lisboa num voo para Frankfurt, o grupo chegou em cima do evento que principiava às 19h locais: mais de dez horas depois e para assistir a um “live” de uma hora e meia! Apesar de não ter falhado a apresentação, foi unânime entre os jornalistas presentes que foi um exemplo de uma deslocação que nada trouxe de acrescento, relativamente a todo o material informativo a que teriam acesso se estivessem nas suas redações.

Com a agravante do tempo gasto na viagem, do cansaço e das emissões produzidas.

Por tudo isto, é hora de mudar de mentalidades e da maneira de comunicar.

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